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10/09/2017

Ainda bem


Ouça enquanto lê Ainda Bem da Marisa Monte

Eu quase cheguei a desacreditar no amor. Os textos sobre ele se tornaram escassos, os suspiros de felicidade diante de casais apaixonados rarearam e até as músicas melosas daquela pasta vergonhosa que ocupavam parte do disco rígido do meu computador não eram mais tocadas. Se antes o amor era visto até no raiar do dia, o cinza pálido tomou conta da minha visão quando passei a assumir tudo apenas como dádivas do ciclo natural das coisas. Assim, gradativamente, o amor foi se perdendo em si mesmo, sucumbindo aos desejos do fracasso, à força da opressão e ao impulso do medo. Foi isso que mais senti quando quase cheguei a desacreditar no amor. O medo do futuro que se abre. Inexplorável. Ameaçador. Como acreditar em algum sentido da vida sem o amor?

De cabeça baixa, andando pelas ruas num corpo quase inerte enquanto ventos ruidosos chacoalhavam meus cabelos, eu sentia que mesmo de mãos fechadas, o amor escorria pelos meus dedos rumo a um destino sem volta. Sem sua crença, ele não existira, eu não seria eu. Mas então, como que por intervenção divina, você apareceu. Todo sorrisos, conversas inteligentes e perfume amadeirado. E de repente, o amor enroscou-se em meus dedos e se fixou como quem não quer sair de perto. E o raiar do dia, aquele que eu já tinha passado à ver pelo lado científico, tornou-se lindo. Virou amor. E eu me tornei toda feita de amor. Éramos ambos amor. Ainda bem que você chegou, senão não haveria esse texto, não haveria eu, não haveria sentido. Eu quase cheguei a desacreditar no amor. Ainda bem que você chegou a tempo.

07/09/2017

É só amanhã


Do outro lado da janela ela via as gotas grossas de chuva chocarem-se violentamente contra o vidro e ouvia o vento que uivava ameaçador, vez ou outra fazendo as gotas menores rodopiarem pelo ar livre. Sozinha no minúsculo apartamento, fitava com atenção descomedida a velha mancha redonda de café sobre a mesa branca de duas cadeiras. Lembrava da história de quando havia a comprado, numa liquidação eterna de "é só amanhã" das Casas Bahia. A vendedora robusta unia estilos distintos com seu batom roxo escuro nos lábios e colar com um Om¹ recortado em madeira escura. Hippie e gótica mantinham-se numa linha tênue para ela. De tanta especificação técnica que a moça havia dito que a mesa possuía, ela só lembrava do MDF antimanchas e as dobradiças que a faziam subir ou descer igual às mesinhas das poltronas de avião. No intuito de economizar espaço, ela descobriu que a mesa não cumpria nenhuma de suas funções. Três meses depois de instalada por um moço risonho que veio à sua casa entregar a mesa compacta, ela sucumbiu ao fracasso quando não aguentou a xícara de café quente sobre si deixando um rastro amarronzado na madeira branca e pouco depois desistiu de vez de subir e alinhar-se na extensão da parede. Teimosa, ocupava um espaço precioso do pequeno apartamento, dificultava a abertura da porta e rangia reclamações a cada novo esbarrão em suas quinas. Com a energia elétrica cortada, o silêncio só não se tornara tedioso devido as gotas com seus ruídos díspares. O gato siamês que observava atento à animação em frente à janela, saltou do sofá e ronronou manhoso quando subiu na mesa tapando a mancha de café. Um trovão assustou a ambos, que atônitos, voltaram a atenção para a janela. Ela esfregou a cabeça peluda do bichano e sorriu. Se a mesa funcionasse como devia, a cena não seria possível. Ainda bem que ela não funcionava direito. Animais e coisas se parecem mesmo com seus donos.

¹O Om (ॐ) é o mantra mais importante do hinduísmo. Essa sílaba única, Om, vem dos Vedas. Como uma palavra sânscrita, significa avati raksati – aquilo que lhe protege, lhe abençoa. Diz-se que ele contém o conhecimento dos Vedas e é considerado o corpo sonoro do Absoluto, Shabda Brahman.