26/03/2017

Pé de vento


Quando Laura passou a pé rente ao meio-fio da praça central, ela sabia que jamais voltaria a ver aquelas ruas de ladrilhos com os mesmos olhos. A igreja de tijolo escuro com os sinos ostentados nas duas torres principais e os vitrais que retratavam cenas bíblicas tinham um lindo efeito multicor sob os raios solares do entardecer. A pequena área de praça dedicada aos brinquedos, com chão de terra batida que quase sempre ficava enlameado em dias de chuva fora responsável por grande parte das suas amizades. Via a si própria, dez anos antes, correndo estabanada em meio aos brinquedos enferrujados. Da cor original só sobrara o velho escorregador vermelho, que também havia guardado os risos de sua mãe, seu pai e seus irmãos. Um só escorregador. Tanta história envolta.

Diminuiu ainda mais a velocidade dos passos para apreciar por mais alguns valiosos segundos o prazer de aspirar aquele ar terroso, úmido e sertanejo. Vislumbrou as serras verdes ao redor, o céu límpido azul turquesa e um pintassilgo teimoso que se arriscara a bater asas naquele sol escaldante. O carro preto já estava parado ao lado da estátua de São José, padroeiro da pequena cidade e responsável pelas badaladas ritmadas das 18 horas de cada dia. A venda do seu Maneco, a padaria da dona Neide, a lan house do Gabriel e o posto de saúde com a enfermeira Carla. Cada casa, cada cor. Sabia exatamente quem se ocultava por trás de cada parede da cidade. Sentiria falta disso.

Parou ao lado da estátua. Ajoelhou-se diante dela e, meio sem certeza, fez um sinal da cruz como sua mãe lhe ensinara — e como sua avó também o fizera. Sempre alheia à religião que regia a cidade, ela achou que devia um agradecimento ao Santo. Com um apertar de botões, destravou o carro. Levantou-se e pôs a mochila no assento ao lado do seu. Não pôs música porque o dia não era disso. Deu a partida e virou as costas para sua pequena cidade. Ainda teve tempo de olhar furtivamente para trás e aspirar por mais tempo que devia aquele cheiro familiar. Queria levar consigo aquele ar guardado nos pulmões. Quando já havia se afastado da cidade há quase trinta minutos, Laura olhou para o céu ainda límpido e não pôde evitar uma lágrima solitária de rolar pelo rosto. "Obrigado São José", gritou sozinha em seu carro e sorriu. Não seria tão ruim ir para cidade grande.
Esse conto é dedicado à minha avó, que faria aniversário no domingo passado, dia 19 de março, mesmo dia dedicado à São José, considerado pelo cristianismo o pai de Jesus. No dia, os nordestinos rezam para o Santo e juram de pé junto que, se chover nesse dia, a colheita do ano vai ser boa.

26 comentários:

  1. Que texto mais lindo. E que bela dedicação. Nossa! <3
    http://b-uscandosonhos.blogspot.com.br/

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  2. Seus textos sempre fazem eu me sentir como se fosse parte da historia, é muito gostosinho de ler! Muito tocante, todosssss. Parabéns menina, vocêe tem sucesso demais!

    Beijocas,
    Dossiê de Verão | Fanpage | Instagram

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    1. Que bom que eu consigo transmitir isso pra você! É exatamente isso que desejo passar com o que escrevo. Imagina, eu só pratico, haha!
      Obrigada pelo comentário ♥
      Beijão! :)

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  3. Sempre me perco em cada texto que escreve. Me sinto bem, como se fugisse da minha realidade ~não tão boa ultimamente~ por alguns instantes. Sinto falta de me entregar assim a escrever e sinto uma invejinha branca de cada nova postagem aqui. Torço muito pelo seu sucesso :)
    Beijinhos <3

    ~desculpa o sumiço~

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    1. Ah, você sabe o quanto amo seus comentários e o carinho de sempre, né? Eu fico feliz por conseguir fazer com que você se desprenda da realidade porque significa que eu consegui te envolver com minhas palavras! E pode ficar com invejinha sim, mas pratica que depois vem!
      Obrigada pelo comentário ♥
      Beijão! :)

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  4. Ah, gente, que lindo!
    Adorei!
    Principalmente o final e o fato de ser dedicado a sua avó.
    <3

    Beijooos

    www.casosacasoselivros.com
    www.livrosdateca.com

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    1. Obrigada pelo carinho e o comentário Teca! ♥
      Beijão! :)

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  5. Que texto lindo, Sel! Ficou ainda mais lindo quando descobri que era mais do que um texto. Dá pra perceber que veio do coração, sabe? Gostei muito! E ainda mais por você ter se aprofundado em cada detalhe, tornou o texto mais vivo e eu adoro quando leio textos assim que minha imaginação se aflora, sabe? Enfim, adorei!
    Beijos!
    www.likeparadise.com.br

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    1. Descrição é algo que me encanta. Me faz divagar sobre o cenário e todo o desenrolar da cena. Eu fico feliz quando alguém compartilha do mesmo amor que o meu! Enfim, obrigada por isso!
      E obrigada pleo comentário ♥
      Beijão! :)

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  6. Você escreve tão bem Selma, saudade de ter tempo para entrar aqui e ler seus textos.
    Beijos.

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    1. Ah Fê, muito obrigada! Eu sei que o tempo é corrido pra todo mundo, mas é sempre bom te ter aqui comentando sobre os meus escritos!
      Obrigada pelo comentário! ♥
      Beijão! :)

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  7. Que texto ♥ Sabe que amo tuas escritas, né? Texto lindo, intenso e cheio de sentimentos transbordando. Partir é sempre uma dor diferente. Deixar uma parte da gente para trás é como se despir e nunca mais ver aquela coisinha que fazia nossos dias diferentes. Enfim, amei, amei.

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    1. E você sabe o quanto eu amo as suas, né? ♥ Na partida, eu nunca sei de quem é a dor maior, de quem parte ou de quem fica. Mas sempre sobra saudade boa e nostalgia feliz.
      Obrigada pelo comentário! ♥
      Beijão! :)

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  8. Aiii que texto liindo!!! <3 cheio de sentimentos *-*


    www.apequenaka.com

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  9. Sempre um texto tocante e apaixonante! Confesso que esse foi um dos que mais amei por se tratar da minha terra, o NORDESTE! Hahaha..Aqui é mesmo assim, as pessoas devotas de São José sempre esperam que chova nesse dia. Lindo seu texto Selma, como todos que você faz!

    Hey, tem post novinho por lá e te convido a dar uma passadinha no blog. Beijocas! ♥

    Sorriso Jovem | SJ Oficial Fanpage

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    1. Obrigada Hilda! O Nordeste é lindo demais, né? Eu lembro quando morava aí da felicidade que era quando chovia no dia 19. Até hoje, mesmo morando em São Paulo, fico feliz quando meus parentes dizem que choveu. É uma crença que a gente aprende ter, né?
      Obrigada pelo comentário! ♥
      Beijão! :)

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  10. Oi Selma, que texto mais incrível e sensível! Nem preciso dizer que amei como sempre né?
    Me trouxe muito a sensação de nostalgia e ao mesmo tempo em que fui transportada para aquele ambiente enquanto lia, também me peguei pensando na minha infância e em quantas histórias daquela época ficaram gravadas nos lugares que costumava passar meu tempo.
    Beijos

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    1. Oi Kim! Ah, e eu te agradeço pelo carinho de sempre!
      Acho que cidade pequena tem uma sensação de proximidade que todo mundo sente, até quem não conhece uma, né?
      Obrigada pelo comentário! ♥
      Beijão! :)

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  11. Não tinha tido a oportunidade de ler um texto seu ainda, mas eu achei lindo esse. São poucas pessoas na minha opinião que ainda conseguem escrever com o coração. Você escreve muito bem Selma. Parabéns atrasado para sua avó. Até mais!

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    1. Emy, que bom que teve um tempo pra ler Emy! Eu chegou quase a ficar emocionada pelas suas palavras, porque é justamente isso que eu tento, deixar um pouco de mim em cada entrelinha para que o leitor possa ter várias sensações de um mesmo texto. Eu agradeço em nome dela, que deve ficar feliz por ser sempre lembrada.
      Obrigada pelo comentário! ♥
      Beijão! :)

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  12. Já disse antes, mas vou repetir (porque sim): adoro suas descrições. Adoro poder imaginar cada detalhe da cena e sentir que estou dentro dela, talvez num banquinho de praça (ou próxima ao escorregador vermelho), observando a protagonista distraidamente e imaginando alguns pedaços do que você nos narrou.

    p.s.: gostei do quote no final também!

    Tenha um domingo de outono lindo ♥
    O Único Jeito

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    1. Eu fico tão feliz de saber que tenho sua aprovação. Porque já te disse milhares de vezes que sua escrita me inspira, né? Ah, você se imaginou na cena e eu consegui exatamente o que desejava.
      Obrigada pelo comentário! ♥
      Beijão! :)

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  13. Tô arrepiadinha da cabeça aos pés. São José tem uma significância muito grande na minha vida. Esse ano ainda mais. e essa notinha no final do texto? Só amor. ♥ (e saudades). Você tem um jeito único de descrever cenários, bonita. É sempre um deleite te ler.

    beijos

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    1. Sério? Que legal! Na minha família, São José fez parte inclusive do casamento dos meus pais e consequentemente faz parte de quem eu sou. Fico tão feliz por ler isso, bonita.
      Obrigada pelo comentário! ♥
      Beijão! :)

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Um beijão, Selma Barbosa.