Vícios

Fagulhas esvoaçavam alto no céu. O cabelo certamente não amanheceria com um cheiro muito agradável no outro dia. O crepitar inconfundível do fogo ávido consumindo celulose recente era apaziguador. Já passavam das duas da manhã de uma madrugada gelada. Eu mal sentia a ponta dos dedos. Um garrafa térmica com chá de erva-doce aqui, canecas por ali e todos meus amigos dormindo em seus colchões infláveis ou em suas barracas improvisadas. O mar, tempestuoso, ainda bradava os sussurros ensandecidos de um dia anterior cheio de visitantes bêbados e de jovens risonhos. A lua cheia ainda brilhava lá no alto, contrastando o brilho cálido com as ondas revoltas do oceano. Eu sentada sobre meu colchão, envolvia meus joelhos, sentia o cheiro de sal nos meus cabelos, sentia frio e calor ao mesmo tempo. Estava cheia de mim. Não num sentido pejorativo, mas num sentido que faz a gente se sentir completa. Num momento em que a gente só precisa da nossa própria companhia.

Um gato malhado tímido passou ao lado da fogueira e depois de passar entre todo o pessoal, acabou por deitar-se ao meu lado. O fogo já brilhava mais tímido, com jeitinho de quem queria dar tchau sem saber como. A lua parecia ter ido tentar se encontrar novamente com seu par romântico. O mar ainda exalava o gosto salgado que invadia meu paladar, mas o céu já não era mais aquela vastidão escura em que eu me encontrava há pouco tempo, nuvens pálidas, fininhas, contrastavam com o degradê de lilases que se formava. Enquanto acarinhava o gatinho e assobiava vagarosamente ao som de "Don't Worry Be Happy", alguns pássaros passaram em revoadas quando o sol resolveu espreguiçar-se e mostrar o rosto. Um amigo meu, incomodado talvez pelo meu assobio ou alguns dos raios solares que lhe aqueciam a face, acordou com voz manhosa e pedindo café.

- O que você tá fazendo aí ainda?

- Acho que me amo.

- E eu pensando que eu quem estava drogado, vou voltar a dormir.

É. Talvez eu esteja mesmo viciada. Viciada em mim. Ando por aí tão drogada em amor-próprio que provavelmente Narciso ficaria com inveja da minha personalidade egocêntrica. Meus amigos continuavam jogando em seus cantinhos de areia praiana, o café já tinha esfriado e o gato já tinha ido correr atrás de algo que lhe chamara a atenção. O sol já vinha vigoroso sobre meu rosto me dizer o quão linda é a vida, a natureza, o dia. Acho que uma lágrima teimosa escorreu quando eu finalmente deitei e adormeci. Eu realmente me drogo em heroína. A heroína que sou.

*repost do meu blog antigo