01/10/2017

Velha história


Sob a touca cinza, possuía cabelos desgrenhados num tom cinza-claro que disputavam a cabeça enrugada com outros poucos fios marrons.  Os olhos azuis-piscina envoltos por pálpebras cansadas de anos de trabalho continham um brilho de realização. Andava com ajuda de uma muleta que em sua haste havia pequenas flores artificiais em tons lilás. "Só pra deixar a vida mais colorida", me dissera com um sorriso frouxo. Usava uma calça jeans desbotada que já mostrava marcas do tempo e algumas patinhas enlameadas aqui e acolá demonstravam que o senhor tinha um cachorro, que por sinal era muito bagunceiro. Nos pés, usava um All Star vermelho também com sinais de gasto: um notável rasgão despontava próximo ao calcanhar esquerdo e um remendo no pé direito havia sido feito com tecido xadrez e linha branca grossa, o que deixava sua aparência um tanto quanto cômica. Fazia frio lá fora e tentando vencer o vento gélido que teimava em nos alcançar, o velho usava um suéter de lã num tom marrom sujo, do tipo de quando a gente mistura várias cores pra ver no que dá.
Carregava uma pequena mala de couro à tira-colo e um radinho de pilha no bolso. Um colar de São Francisco ia no pescoço e uma barba curta terminava por descrever aquela figura desconectada da realidade do mundo moderno. Em plena sexta-feira, sentara-se ao meu lado no trem, e meio sem jeito, mas confiança na voz se apresentou.

- Meu nome é Manoel. - Estendera sua mão enrugada em minha direção.

Retirei meus fones do ouvido, já que eles estavam num volume tão alto que mal pude ouvir o velho se apresentar, e meio por impulso ou educação, estendi minha mão em direção à dele, que o levou aos lábios num beijo suave.

- Prazer, Suzana.

- Filha... Esse era o nome da minha filha.

- Ah... - Foi tudo o que consegui pronunciar diante de uma revelação que não dizia respeito a mim, pelo menos não diretamente.

- Só que ela não era tão bonita... Acho que é porque tinha puxado ao pai! - sorriu largamente.

Uma péssima mania minha era a de imaginar crianças em idade adulta e velhos em sua juventude, e bem, digamos igual às moças da época do velho, ele devia ter sido um pão!

- Imagina! Se ela ter herdado do seus olhos azuis, já posso imaginar o quanto ela deve ser bonita.

- Devia, você quer dizer... E muito obrigado pelo elogio. Deve haver algumas décadas desde que não recebo um.

- Exagero seu, imagino. E desculpe-me pela petulância, mas... Porque devia?

- Perdi minha família há dois anos no Camboja. Minha filha Suzana era minha princesa mais adorada. Foram todos de uma vez só... Minha esposa Madalena, e meus filhos Fernando e Lucas. Todos... Imagina como é sentir seu coração sendo arrancado de você e esmagado com os pés. Agora multiplique essa dor por umas vinte vezes. Deu pra imaginar? - E me dizia com ar choroso, e o olhar vago num ponto distante ao horizonte.

- Sim... Imagino como deve ser difícil para o senhor. Mas Camboja? Deve ter acontecido há muito tempo, pois o senhor tem até um sotaque brasileiro. Não me parece em nada com um visitante cambojano. - Falei na casualidade que a conversa proporcionava, porque em toda minha vida jamais havia conhecido um cambojano, que se dirá saber como é o sotaque de um.

- Éramos brasileiros! Quer dizer, somente Madalena e eu. Nossos filhos foram feitos por lá mesmo... - E nessa parte havia me dado um tapinha camarada nas costas e tinha uma expressão maliciosa no rosto. - Fomos ao Camboja em nossa viagem de lua-de-mel. Nos casamos muito jovens e mesmo com nossa família nos insistindo, e até pagando pra nós irmos pra Paris, falamos que queríamos uma viagem que realmente valesse a pena e deixasse boas memórias. - "Como se Paris não deixasse boas memórias", pensei meio que desviando a atenção do velho por alguns instantes. - Acabamos escolhendo o Camboja aleatoriamente. Fomos uma vez e nos apaixonamos pelo povo, os costumes, as tradições... Éramos ricos, mas doamos quase tudo. Você deve saber as dificuldades que a maioria dos cambojanos passam. Vivemos a maior parte da vida como voluntários em diversas instituições e ONGs. Quando conseguíamos um trabalho, comprávamos uma quantidade boa de roupa que sabia que nos duraria o suficiente e doávamos o resto do dinheiro. Foi sempre assim. Nossos filhos nasceram já sabendo dividir tudo com todos. Cássio era mais mesquinho e por saber do dinheiro que tínhamos e não usávamos era meio revoltado. Quando fez dezoito anos nos deixou. Pediu dinheiro pra vir ao Brasil e nunca mais voltou. Vive com os avós até hoje e deve ser feliz vivendo a vidinha egoísta do pessoal da socialite. Assim que Cássio nos deixou, uma guerra Civil eclodiu no Camboja, matando milhares de pessoas. Tentaram atacar a instituição de caridade da qual eu fazia parte na época, e todos os homens da comunidade ao redor munidos de armas pesadas foram defender nosso povo dos extremistas. Acabamos por vencer. Cerca de apenas dez sobreviventes do lado (e todos gravemente feridos) de lá e apenas três mortos do nosso lado. Mas o que não sabíamos é que num ato de desespero, vendo a derrota iminente, eles acabaram por colocar uma dinamite no centro da casa onde ficava a instituição. Dezenas de mulheres e crianças morreram carbonizadas naquele dia. Era uma cena deprimente. É como se ainda pudesse sentir o cheiro podre de carne queimada. E ali, naquele momento, colei meus joelhos ao chão, e chorei... Chorei por horas e horas, coisa que jamais tinha feito na minha vida, nem diante de todas as mazelas que vi em minha estadia na África. Porque há famílias que não veem um soldado voltar pra casa vivo, mas eu fui um soldado que voltei e não vi minha família viva. Mas tudo passa, pois não? - Me dizia com ar tenso, mas um sorriso breve esboçava-se no rosto.

- E Cássio? Porque não fala com ele? Pede ajuda, mora num lugar bom, usa roupas quentinhas...

- Cássio... Que Deus tenham pena de sua alma! É um desconhecido pra mim agora. Ingrato, falou que nunca fui um bom pai. Podia dar de tudo para ele e não dei, o deixei crescer em meio à moleques esfomeados num país de gente pobre. Quanta maldade num coração tão jovem! Esqueci de seu rosto, sua voz, seu jeito. Prefiro esquecer que alguém tão impuro saiu com minha genética ou a de Madalena.

- Nossa. Seu... Manoel, não é isso? - Ele assentiu assiduamente com um movimento de cabeça. - Onde você vive agora? Come, dorme num lugar quente, vive seguro?

- Ah filha, eu moro por aí, em algum lugar ao longe...

- Ah... - De novo não sabia muito bem o que comentar.

De repente, o habitual som de uma nova estação foi tocada no trem e saindo do meu transe pós longa história, acabei por me despedir do senhor. Dois homens de branco esperavam do outro lado da porta ansiosos. Senti o nervosismo do tal seu Manoel, e involuntariamente voltei para perto de si. Senti sua respiração acalmar-se e ele soltar um riso forçado.

- Até que enfim te encontramos, hein seu Jorge? - Um dos homens colocava o braço em volta da cintura do velho.

- Quem são vocês? Pra onde estão o levando?

- De volta à clínica psiquiátrica, já é a quinta vez que esse maluco nos foge. 

Então tudo não passava de uma história fantasiosa, uma coisa imaginada por um velho doido.

- Maluco? - Olhava de relance ora pra o velho, ora para os clínicos.

- Sim. O seu Jorge sempre quando foge pega algum transporte público e inventa uma história de vida qualquer pra alguém. Antes de perder a memória e o juízo de vez, ele era um conhecido escritor. Daí dá pra se notar de onde saem tantas ideias.

- Mas a história dele foi ótima!

- Talvez tenha sido. - O enfermeiro com um crachá que havia escrito Roberto falou com certo desdém na voz. - Mas por falar nisso... Quem é você mesmo?

- Eu sou ahn... A filha dele. Ele fica sob minha responsabilidade a partir de agora. - Falei com mais firmeza na voz do que imaginei que poderia.

Seu Manoel, digo seu Jorge, levantou seus grandes olhos azuis em direção à mim e soltou um sorriso contente. Os clínicos, indecisos sobre deixar o senhor comigo, mas sem a mínima vontade de se esforçar pra levá-lo, acabaram por dar de ombros. Seu Manoel ofereceu seu braço pra mim e fomos pra minha casa. Tomou uma grande caneca de café e comeu dezenas de bolachas de maisena. E depois de um banho quente e de eu ter lhe dado roupas quentes, ele pôs uma cadeira próxima à cabeceira da minha cama e contou uma velha história de um pirata que navegou os sete mares num navio de proa de ouro. E foi assim por várias e várias noites. Eu dava-lhe casa, comida e roupa lavada e ele retribuía-me com imaginação e histórias fantasiosas todas as noites, e foi assim até o dia em que sendo maluco como o destino lhe reservara, pegou sua mala de couro e disse precisar ir embora. Colocou as poucas roupas que tinha e as que eu havia lhe dado em sua estadia em minha casa. 

Outro dia recebo uma carta num envelope marrom, meio gasto nas bordas, como se já tivesse sido escrito há um bom tempo. Nem precisei ler o remetente pra saber de quem se tratava. Só uma pessoa do mundo tinha aquela letra aristocrática e mania por cartas, afinal que ainda enviava cartas? Seu Manoel... Bem, pelo menos pra mim. Já que eu havia gostado tanto da falsa história de vida dele que acabei por acatá-lá de vez.

"Oi filha, como vai?
Sei que você gostava de ouvir minhas histórias imaginadas, mas tudo que é bom dura o tempo suficiente para ser inesquecível. Voltei pra rua como antigamente, mas não se preocupe que arranjei outra filha postiça de uma ONG aqui do bairro. Eu não sou louco Suzana, fui parar num manicômio por culpa de Cássio. Toda a minha história é real. Mas ele me deixava lá por não querer cuidar do velho pai e assim que soube que alguém - nesse caso, você - se dispôs a me ajudar, a primeira coisa que fez foi acabar o contrato com a clínica. Dizia gastar demais comigo. Acho que ficou feliz, afinal, por mais uma vez ter mais dinheiro a disposição. Enfim, você me salvou. E eu serei eternamente grato por isso.
Do seu velho, querido - e postiço - pai, Manoel Jorge."

Involuntariamente, lágrimas teimosas escorreram dos meus olhos. Seu Manoel se fora realmente... Depois da carta foram cerca de três anos sem ter notícia do senhor do trem até que o vi num telejornal daqueles de hora do almoço, com a seguinte manchete "Manoel diz ser o único sobrevivente da tropa brasileira da Guerra Fria." Eu ri.  Parecia que ele tinha alguma paixão por soldados e guerras, mas o velho realmente sabia como ser convincente. E quer saber? Mesmo sem conhecer sua história verdadeira - e consequentemente sem saber se seu nome realmente era Manoel -, ele foi o doido mais maneiro que eu já conheci.


*Esse conto é uma repost de meu blog antigo

4 comentários:

  1. Selma. Você rouba meu coração de um jeito! Que saudades eu estava daqui. E que maneira mais linda de voltar. Quantos sorrisos tirados por esse conto? Aaah - não tem como responder isso. Incrível. ♥. "Obrigado" - esta é a palavra!

    www.acessopermitido.com

    ResponderExcluir
  2. Ah, eu me lembro desse conto lindo seu de alguns blogs atrás ♥

    ResponderExcluir
  3. Que conto mais lindo Selma!

    Abraço!

    http://cotidiano-alternativo.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  4. Oi, Selma!
    Eu fiquei com o coração quentinho ao ler o seu conto. De alguma maneira, desejei que ele fosse uma crônica dessas bem verdadeiras e que nos enchem de esperança.
    De alguma forma, seu texto me lembrou do meu avô. Bateu uma saudade...

    Gosto da sua voz literária :)

    Beijos,

    Algumas Observações

    ResponderExcluir

Olá! Fico muito feliz de que leu o que escrevi com carinho e vai me dedicar um pouco do seu tempo para deixar um comentário. Eu agradeço. Eu tenho costume de responder a todos os comentários, então deixe marcado a caixinha "Notifique-me" no canto inferior direito da caixa de mensagem para receber a atualização em seu e-mail ou sinta-se à vontade para voltar a esse post e ver o que eu te respondi.
Um beijão, Selma Barbosa.