17/09/2017

Café requentado

 
Era a oitava vez no dia em que pensava sobre o dia anterior. Sob o tampo da mesa de centro estava a xícara de café requentado, uma revista de fofocas entreaberta e seus pés cansados envolvidos numa infantil meia de lã. O brilho luminoso do decodificador da televisão marcava duas horas da manhã e ele, olhando fixamente para o teto verde água, já havia perdido as contas de quantas vezes viu os faróis dos carros lá embaixo que reluziam nas paredes do apartamento atravessadas pelo vidro da janela.

Um gato miou no apartamento vizinho e ele saiu do transe em que estava para ouvir a filha de dois anos ressonar risonha em seu quarto. O berço de madeira barata rangeu reclamações sob o peso da criança antes que tudo se acalmasse novamente. O silêncio da madrugada o cercou intenso e houve um pequeno sobressalto quando uma brisa fria cruzou parte da cortina que cobria a janela e fechou repentinamente a revista sobre a mesa.

Olhando para a penumbra de sua sala, com as pupilas dilatadas pela escuridão em que se encontrava, o rosto dela lhe viera à mente. O corpo. O cabelo. O sorriso. A voz mansa. Maturidade que não condizia com a pouca idade. A mania de sacudir o cabelo a cada vento que lhe batia o rosto ou de rir sozinha sempre que se via refletida nas vitrines das lojas. Conversava asneiras com inteligência e falava de coisas sérias com um quê de comédia irônica. Andava suave ao mesmo tempo que pisava firme como se nada mais lhe importasse além daquele único momento. Distribuindo-lhe bom dia, partiu ligeira e deixou saudade. Já era a nona vez no dia em que pensava sobre o dia anterior.

Envolto nas quatro paredes daquele perímetro escasso do apartamento, ele escondia sob a lente do óculos um casamento de quatro anos que já se encontrava fracassado. Um namoro idealizado demais na perfeição e uma filha não planejada. De todos os erros, a menina risonha tinha sido o menor deles. Mas ali, sentado no sofá numa madrugada fria da segunda-feira e acompanhado de um café requentado junto à uma revista jogada no chão, ele sentia-se indeciso. Amor? Esse acalento que sentia toda vez que a via balançando o cabelo, tal qual no dia anterior, poderia ser amor? Ou era mais uma peça que a vida lhe pregava?

A porta de seu quarto grunhiu e sua esposa saiu. Cambaleante e desnorteada rumo ao banheiro. Aproveitou o momento oportuno e a seguiu até a cama. Ela suspirou manhosa envolta nos braços dele enquanto se cobriam com o edredom herdado da avó dela. E ele, todo esperançoso, manejou o corpo esguio da esposa e a olhou no rosto. Tentou. Procurou. Esforçou-se. Não havia o calor apaziguante. Não havia o acalento ou a liberdade. Quando havia deixado de ser amor? E o porque o tinha sido? Pensou na esposa ao seu lado e no apartamento minúsculo. Olhou para a aliança que reluzia em seu anelar esquerdo, o retirou e o colocou silenciosamente na escrivaninha ao lado da cama. Pensou na filha loira e risonha do quarto ao lado e se arrependeu. Pôs a aliança no mesmo lugar em que o dedo já havia se acostumado ao acessório.

E voltou a pensar no dia anterior. O corpo. O cabelo. O sorriso. Aquele bom dia amigável que lhe iluminava cada espaço dentro de si. Cheio de café requentado no estômago, sentia-se gelado por dentro com uma indecisão que lhe sacudia a alma. Em que momento aquilo ao seu redor perdera o sentido? O amor é mesmo finito? Mas e aquela promessa de eternidade clamada em voz alta diante do sacerdote, de nada valera? Com uma interrogação que lhe pressionava as têmporas, era a décima vez em que pensava sobre o dia anterior. E já não tinha mais nenhuma opinião formada sobre o amor.

4 comentários:

  1. Outro texto maravilhoso, srta. Selma <3
    Tão bem escrito e coeso :') Eu tava pensando sobre isso semana passada. Sobre a finitude do amor. Não era exatamente da mesma forma que seu personagem (grazadeus hahaha), mas foi ótimo ler isso. Seu blog é um amor, e esse, espero que dure sempre.
    Beijosss
    seessemundofossemeu.blogspot.com

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  2. Sempre saio daqui inspirada e dessa vez foi sobre o amor. Um debate dentro dele e tão bem explanado pros leitores, gostaria de uma pequena versão com os pensamentos dela, será que rola? beijo!

    Ray e os Dezoito

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  3. Gosto muito do jeito que você escreve Selma, já leu Balzac? Você é tão descritiva como ele.
    Texto com um assunto muito forte esse.
    Beijos!
    cotidiano-alternativo.blogspot.com.br

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  4. Que lindo. Eu as vezes me pergunto como funciona esse lance de amor. Na minha concepção, amar é uma escolha. Eu escolho, todo dia, amar meu marido, amar nossa família. Tem dias que a decisão é fácil, em outros eu tenho que me lembrar porque faço essa escolha todos os dias.

    Vidas em Preto e Branco

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Um beijão, Selma Barbosa.