Eu percebi que a situação estava definhando quando o relógio parecia estar com os ponteiros imóveis. Calmos e silenciosos, a ânsia de vê-los rodar novamente fazia com que eu imaginasse seu ruído em minha cabeça. Tic-tac. Alto, claro e insuportável. Tic-tac. Fazia alguns dias desde que a reclusão em um ambiente tão familiar parecia a decisão certa a se tomar. Os objetos pessoais, a televisão companheira e um gato de pelúcia encharcado de pó desde o último Natal eram parte de um cenário que ainda me agradava. Só uma voz irritante e intermitente que ainda sussurrava meio inaudível que o que eu fazia a mim mesma era errado. As duas últimas visitas ao psicólogo, evitei. Achei desnecessário ir de novo relatar problemas e neuras que ele não sabia como era passá-los, coisas que ele só havia aprendido na teoria e que para mim, não fazia sentido que ele entendesse algo. A primeira semana passou calma, as outras duas foram divertidas, na quarta semana eu não tinha mais ideia do que fazer. Na quinta semana, o relógio parou. Foi como se o próprio tempo tivesse parado, se a vida lá fora houvesse silenciado e minha alma, num corpo já decrépito, ousasse manter-se animando alguém que já desistira da vida. Por um breve momento, eu lembrei da época de escola, do primeiro emprego e o namorado nerd do primeiro semestre de faculdade. Deitada no sofá de tecido preto com manchas de uso, eu olhava para o relógio enquanto sentia o pulsar do peito, ouvia o tic-tac falso em minha mente e um impulso louco de correr desesperada mesmo sem um local específico como destino.
Lembrei de meu pai, com cabelo grisalho caindo-lhe pelas têmporas, a barba por fazer e os olhos sempre tristes quando repousavam em mim a culpa da morte de minha mãe ainda no parto. Ele preferira não explicitar esse pensamento, porque no fundo eu a lembrava e ele me amava por isso. Mas no dia em que meus primeiros demônios apareceram, que as vontades de sumir do mundo pareciam querer superar a de tentar ainda, mais uma vez, aguentar a insanidade da vida real, meu pai me disse, com olheiras profundas e lágrimas que lhe molhava o rosto, que talvez eu não estivesse pronta pra viver. Que eu tinha a alma de minha mãe e queria mudar o mundo de uma forma que minhas únicas duas mãos humanas não seriam jamais capazes de fazer. "Você não pode tomar conta de tanta gente de uma só vez, comece preocupando-se com você", ele disse numa manhã de sábado enquanto me servia chá de camomila. A esperança de que o chá me acalmasse se foi quando eu simplesmente passei a murmurar para ele as mesmas frases que as vozes me diziam. Incapaz. Inútil. Assassina. A cápsula de cor indecifrável continuava no pequeno compartimento da aliança do dedo anelar, ainda esperando o momento certo para a desistência final. Na geladeira, com papel que sobrou do saco de pão, havia um "mamãe me amaria" ainda com minhas letras trêmulas. Com a mão esquerda, eu então puxei a pílula do pequeno espaço e coloquei embaixo da língua, ainda com receio do que viria a seguir. Olhei para o relógio dourado por mais alguns segundos e engoli a pílula, sentindo o gosto metálico do conteúdo. A visão ficou anuviada, o corpo protestava. Pensei ter ouvido o ruído sonoro do relógio agora real, mas já estava em meio a uma transição entre duas dimensões diferentes. Chamei "Mamãe? Mamãe?", mas só o silêncio parecia perpetuar por ali. Quando senti o coração desistir da luta e parar de bater, eu me arrependi brevemente. O relógio voltaria a bater e o psicólogo entenderia, mas eu desisti porque já havia cansado. Incapaz. Talvez não fosse errado o que me encorajavam a fazer. Inútil. "Mamãe me amaria". Mamãe me amaria? Acredito que não. Quando a penumbra me envolveu a alma eu ouvi um baque oco contra o tapete da sala. O relógio provavelmente caíra no chão e se espatifara em estilhaços múltiplos. Assassina.
Gente, não estou conseguindo responder os comentários, me desculpem. Prometo atualizar todos no máximo até o fim de semana.
Que textão da **** ♥ É estranho como existem monstros dentro da gente capazes de nos fazer olhar além daquilo que deveria ser o limite.
ResponderExcluirAHHH que amor! Às vezes, a dor é maior do que se pode suportar e a falta de ajuda só faz com que o poço pareça ainda mais fundo...
ExcluirObrigada pelo comentário! ♥
Beijão! :)
Cara esse texto me lembrou muito Os treze porquês! Parabéns viu <3
ResponderExcluirhttp://b-uscandosonhos.blogspot.com.br/
Sério Kézia? Eu ainda não assisti, apesar que de tanto ver falar dele em tantos lugares acabei sabendo todo o enrendo, mas enfim. Que bom que o que escrevi lembrou uma obra tão difundida.
ExcluirObrigada pelo comentário! ♥
Beijão! :)
Que texto forte e bonito, gostei muito. <3
ResponderExcluirObrigada pelo comentário! ♥
ExcluirBeijão! :)
que pesadooo, amei, essas vozes parecem com as minhas :C exatamente assim!
ResponderExcluirVocê tá pensando em escrever um livro solo?
Com amor,
❤ Bruna Morgan ❤
Ah Bruna :( Não esperava que alguém se identificasse com a personagem porque isso realmente é muito triste...
ExcluirEntão, não por enquanto. Apesar de já ter um início, não consigo a conclusão. Talvez um dia. Um dia...
Obrigada pelo comentário! ♥
Beijão! :)
Selmaaa, que texto incrível foi esse? Mais uma vez - como sempre - eu me senti transportada diretamente para dentro da história. Como algumas pessoas antes de mim já comentaram, achei um pouco pesado, porque trata de algo tão real e que afeta muitas pessoas. Acho que todos temos essas "vozes" dentro de nós, que nada mais são do que um eco daquilo que vivemos, sofremos e muitas vezes não compreendemos. Como disse minha professora de psicologia certa vez, de louco todos temos um pouco, só muda o grau (as palavras exatas eu não lembro, mas era algo assim). E acredito que cada um tenta lidar com isso à sua maneira. Para alguns, talvez essas vozes sejam um fardo pesado demais para suportar, cada um sabe o peso daquilo que carrega nos ombros. Já outros, por mais que pese e às vezes até doa, colocam um pé na frente do outro, tentando se sustentar da maneira que dá. Cara, esse texto me fez refletir muito - ainda mais que estou sensibilizada por ter a recém terminado de assistir os 13 porquês - mas fico pensando em quantas pessoas podem ter a nossa volta, pedindo silenciosamente por ajuda, com um fardo maior do que podem carregar, achando que não aguentam e se nós soubéssemos, talvez um simples abraço e um "você consegue" poderiam fazer uma grande diferença.
ResponderExcluirComentários grandes = amor verdadeiro e sincero.
ExcluirEu só tenho que te agradecer pela presença constante e por acrescentar tanto ao texto com o seu comentário. Outra leitora já comentou sobre 13RW, mas eu ainda não vi, apesar de já saber boa parte do enredo de tanto que já vi falar sobre ela, haha. Enfim...
Obrigada pelo comentário! ♥
Beijão! :)