30/01/2017

Salva


Minha cabeça dói, lateja de maneira ritmada, de modo que eu posso estabelecer com exatidão o intervalo entre os batimentos cardíacos. Meu corpo está pesado, inerte, e eu não tenho certeza se posso movimentá-lo perfeitamente. Depois de diversas tentativas frustradas de abrir os olhos, enfim eu consigo, mas as pálpebras dilaceram meu globo ocular. E tudo me parece mórbido, grosso, doentio. Com meus olhos tentando focar em um ponto específico eu não posso relatar o que sinto. Dor? Medo? Provavelmente não passa de indiferença. Já que não há mais saídas para mim. Acabei de cruzar a ponte que me daria resignação. É um lugar seguro para estar.

– É a sua primeira vez aqui? – Um homem alto de cabelo claro e olhos inquisidores pousou sua mão sobre meu ombro. Olha-me de cima a baixo com um ar de curiosidade. Provavelmente estou deitada em um lugar intragável.

– Sim. – Não sinto minha boca. É como se eu tivesse tomado uma anestesia na minha língua e o efeito se dissipou por toda a área ao redor.

– E o que está achando? – Eu noto seus dentes amarelados, alguns espaços vazios em sua boca. Seu rosto está machucado, com feridas preocupantes de tonalidades variadas. Parecem ter datas diferentes.

– Estranho. Muito estranho. – Minhas pernas não estão presas, mas não consigo movê-las. Elas agora parecem pesadas e eu não sei se um dia conseguirei me pôr de pé novamente.

– Bom para uma iniciante. Se cuida. – Antes que eu possa fazer um pedido de socorro ele já se esvaiu, me deixando só novamente com minha mente perturbada. Por um momento, chego a pensar se havia sido um homem real mesmo, mas nem me darei ao trabalho de confirmar, não é necessário.

Aperto os olhos algumas vezes antes de tentar, dolorosamente, levantar minha cabeça. A dor é insuportável e vem em espasmos irregulares. Sinto pontadas na minha costela direita e não consigo distinguir com precisão o que se passa. Com os olhos fechados novamente, percebo uma sombra encobrir meu rosto. Alguém vem ao meu encontro, segura em meu ventre e me põe sentada. Posso ver melhor ao meu redor agora.

É um estacionamento abandonado, com teto baixo, sujo e decrépito. Há formação de lodo em todos os cantos visíveis. O ambiente cheira à urina e suor. A única luz que deixa o local minimamente em penumbra é proveniente de uma pequena portinhola de aço enferrujado à direita, a uns vinte metros de onde eu me encontrava. Há dezenas de pessoas jogadas ao chão. Estão deitadas de bruços, sentadas com a cabeça pendida, uma boa parte parece ter caído e permanecido na mesma posição. Todos têm um olhar perdido, como se contemplassem o infinito. É deprimente e vazio. Eu quero correr e cruzar a fronteira do limite com o lado claro e calmo, o lado de lá. Quero fugir daqui. Dessas pessoas. Não quero mais sentir essa dor de ter que ser eu.

– É sempre confuso da primeira vez. – A moça que havia me ajudado a sentar tem uma voz serena, madura. Não imaginaria uma voz de tamanha sublimidade em um local como esse. Sei que ela está ao meu lado esquerdo porque é desse lado que vem a maior parte do som de sua voz, mas não conheço seu rosto, não consigo enxergá-lo perante o escuro palpável que nos encobre. Não insisto em virar meu rosto em sua direção. O pouco que vejo pela visão periférica já me é suficiente. Vi seus cachos disformes e feridas no rosto.

Ela se mantem quieta, passiva. Dormente, eu prefiro não puxar conversa. Não tenho ânimo ou força para isso. Eu sinto o sangue pulsar nas veias do polegar, ouço as batidas ritmadas da dor incessante em minha cabeça. A costela nem sei ao certo se sinto. O que inspiro é mesmo oxigênio? Estou vivendo ou é só ilusão? Minha alma ainda mantem-se conectada ao corpo físico? E se sim, porque ainda insiste nessa luta de viver nesse mundo cruel onde só vejo sombras e silhuetas estranhas? O estacionamento é tão calmo, frio, duro. Por um momento, sinto minha mente longe, longe...

O homem alto de feridas estranhas aparece no meu campo de visão de repente. Agora vejo seus olhos assustados, compreensivos. Pede para que eu corra que eu fuja. Mas eu não consigo, nem pretendo tentar. O corpo permanece estático, indiferente àquela situação.

Alguma coisa explode em algum lugar. O lugar decrépito agora está exageradamente claro e eu vejo luz vinda em minha direção. Espero a morte, o suspiro final, mas ela não vem. Eu vejo homens de cinza, dezenas deles formando uma espécie de monstro ameaçador, sem forma definida, como uma ameba grande e esquisita. Um deles separou-se do amontoado grotesco e vem em minha direção. Sinto que ele vai me levar pela porta e eu estarei à salvo.

Ele remexe em meu corpo, passa a mão em locais que não deveria, mas eu aceito passível, deve ser o preço a se pagar pela salvação. Sinto as pernas pesadas agora ganharem a leveza de uma brisa quente. Percebo que estou nua da cintura para baixo. Minha voz teima em não sair, a perna continua se recusando a lutar. Está errado, não era para isso acontecer. O homem invade meu corpo. Duro, sujo, violento. Minha cabeça agora tem os espasmos de dor ao ritmo das estocadas do indivíduo estranho ao meu corpo. Eu tento chorar, mas tudo me dói. É como se a alma lutasse pra permanecer onde está. E dói muito ela ser rasgada do corpo. Não sei ao certo quanto tempo depois, ele sobe a calça rapidamente e corre para se juntar ao seu grupo estranho que se forma em ameba. Eu permaneço nua, suja, estática. Já não há saídas para mim. A portinhola, do outro lado, parece cada vez mais distante, intransponível. Tudo está muito escuro, silencioso. Eu não vejo mais a luz. E de repente sinto que tudo ricocheteia vagarosamente no ar. Agora vem a calmaria, a solidão. Estou a salvo de mim. Enfim, estou salva.
Esse texto faz parte do Desafio de Imagem/Palavra proporcionado pelo grupo Café com Blog. Eu escolhi o número 10 e a Lila Martins me deu a palavra ABRIR. A palavra aparece logo no primeiro parágrafo, no seguinte trecho: "Depois de diversas tentativas frustradas de abrir os olhos, enfim eu consigo, mas as pálpebras dilaceram meu globo ocular."
https://www.facebook.com/groups/cafecomblog/

19 comentários:

  1. Menina, que conto é esse? Fiquei perdida em alguns momentos, mas me empolguei com a história. O final foi intragável, mas verdadeiro. Adorei tua intensidade ♥ Esses desafios literários são uma coisa incrível, né? A gente voa longe.

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    1. Ah, peço desculpas se essa sensação de estar perdida acabou não fazendo a experiência de leitura ser melhor. Sim, sim! Obrigada! Eu adoro esses desafios de escrita. Eu geralmente consigo escrever melhor com eles.
      Obrigada pelo comentário!

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  2. Olá, que conto é esse?
    Ainda não conhecia o projeto, achei muito interessante. Parabéns pelo blog ;)

    www.mundofantasticodoslivros.blogspot.com

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    1. Obrigada pelo comentário Camila!
      Volte sempre! :)

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  3. Moça escreve um livro porfaaa <3 hahah
    MDS que conto incrível foi esse? Cada frase, pontos e virgulas <33
    ADOREI ESSE DESAFIO <3

    Beijão <3

    Blog >> www.seteprimaveras.com

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    1. Já tentei vários Gabs! Problema é que acaba faltando inspiração ou me perco no enredo. Mas até lá prometo continuar investido nos contos e crônicas!
      Obrigada pelo comentário! Volte sempre! :)

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  4. Amei seu blog e amei esse conto.
    Seguindo ♥

    https://beijouva.blogspot.com.br/

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  5. Vamos lá: um mundo pós-apocalíptico. O fim para a maior parte da humanidade. Um vírus? Um clichê zumbi? Tão pouco, não disse nada sobre isso, resta a minha mente deduzir o que é. Mas considero a situação bizarra, então um estupro? É isso mesmo? Já não basta está na fronteira da vida e acontece algo dessa magnitude. Considerei a massa cinzenta de seres como coisas não conhecidas pelo homem. Mas a constatação foi decepcionante. Malditos humanos. A saída, espero assim, foi morrer. O que poderia lhe salvar senão o abandono das dores físicas? Isso vai longe.

    Obrigado pela experiência.

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    1. Obrigada a você pelo comentário! Eu prefiro não deixar explícito o que imaginei quando criei esse conto só pra que eu não perca o encanto que a experiência da leitura te proporcionou. Tantas possibilidades que a sua mente criou através de minhas poucas palavras! Acho que com a sua imaginação, eu acabei gostando ainda mais do resultado.
      Volte sempre! :)

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  6. Fico encantada com cada novo texto que aparece por aqui. Acho incrível e maravilhoso essa sua inspiração pra escrever, a minha já se esvaiu a bastante tempo :/
    Talvez se eu voltasse a praticar até conseguiria algo interessante, mas como não tenho feito nada a respeito, a estagnação é minha companhia por enquanto, rs.
    Bjinhos.

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    1. Eu já me enchi de tanto bloqueio criativo que tenho toda vez que tento começar um novo livro. Depois de tanto quebrar a cabeça numa mesma coisa, eu decidi investir em contos, que são o que mais gosto de escrever e que desenvolvo melhor a escrita. Não digo que estão perfeitos, mas eu mesma já vejo a melhora se comparado com alguns de meses atrás. Em breve eu postar algumas dicas que utilizo para escrever, talvez te ajude.
      Obrigada pelo comentário! :)

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  7. Sel, você deveria (com toda a sinceridade do mundo) começar um livro e terminar pra ontem! Eu leria 15 vezes se fosse necessário, que escrita linda! A gente se perde e se encontra, tem um suspense bonito e um conjunto poético em cada frase. Não sei o que dizer, só sei sentir... ♥

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    1. Obrigada Gabi! Como eu tinha falado pra Gabs eu já tentei. E continuo tentando ainda. Mas já é muito gratificante saber que alguém dedicaria um tempo pra ler todo um enredo criado por mim. Eu fico muito feliz quando leio comentários iguais os seus, que falam sobre ter sentido toda uma experiência envolvida no que escrevi.
      Obrigada pelo comentário! :)

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  8. Pra mim, eu estava lendo o trecho de um livro ou até mesmo um conto. Investe nisso, guria. Você é boa. Seu texto foi bem impactante.

    Vidas em Preto e Branco

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    1. Obrigada por isso Lary! Fico muito feliz pelo elogio. E sobre investir: estou tentando, estou tentando...

      Beijo ♥

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  9. Minha nossa, que texto foi esse! Foi muito bem escrito, a narrativa muito bem conduzida e o final era algo completamente do que imaginava (imaginei, seilá, guerra, um mundo pós apocalíptico, até vampiros hahaha)mas esse final foi chocante. Cruel, duro, real. Mas ao mesmo tempo não conseguia parar de ler quando cheguei no parágrafo final. E preciso dizer que só sinto isso quando leio Stephen King haha. Nem sempre os fatos me agradam, me sinto agoniada, mas é aquela coisa, tá tão bem escrito que preciso continuar lendo. E aqui, preciso de discordar de alguns que disseram que o conto é lindo. Não é, porque o final é tão real que fica difícil ser uma história bonita e não consigo achar coisas reais e cruéis bonitas, porque quase nunca o são (desculpa se isso parecer uma crítica, porque não é, e se parecer juro que não foi minha intenção). Mas o modo como você escreve é lindo, não sei se dá pra entender aonde quero chegar haha Sem dúvida é uma grande história, que se fosse um livro leria sem pensar duas vezes. Parabéns pela criatividade e por esse conto.

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    1. Nossa Kim! Eu JAMAIS imaginaria que um dia poderia ser comparada ao rei! Ok, eu acho um certo exagero esse elogio tão lindo, mas fico muito, muito feliz mesmo por isso. E sim, eu concordo com você. Esse não foi um conto pra ser bonito. É a realidade crua e quando eu escrevi, eu sofri junto com a personagem. Quase como se eu mesma estivesse vivenciando aquela angústia. Mas, muito, muito obrigada pelo incentivo. Mesmo que eu ainda não me sinta apta pra escrever um livro, já é um felicidade saber que se caso eu escrevesse, eu teria leitores que apreciariam o que escrevo.
      Obrigada pelo comentário!
      Beijão ♥

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  10. Dizendo novamente, você escreve muito bem!
    Amei o conto, a intensidades, a força e a forma que ele flui e nos mostra uma situação quase palpável.

    Meus parabéns! <3

    XOXO

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Olá! Fico muito feliz de que leu o que escrevi com carinho e vai me dedicar um pouco do seu tempo para deixar um comentário. Eu agradeço. Eu tenho costume de responder a todos os comentários, então deixe marcado a caixinha "Notifique-me" no canto inferior direito da caixa de mensagem para receber a atualização em seu e-mail ou sinta-se à vontade para voltar a esse post e ver o que eu te respondi.
Um beijão, Selma Barbosa.