Eu costumava gostar dos dias de chuva quando era criança. Mas quando você cresce e passa a morar sozinha num apartamento maior do que necessita e não há seus pais para te acalentarem em caso de trovoadas, passa a ser atormentador os dias de chuva. Especialmente quando falta energia elétrica. Desde os 12 anos eu dormia com a televisão ligada no volume máximo ou os fones de ouvido quase estourando meus tímpanos tocando heavy metal - mesmo que eu detestasse o gênero. Quando a gente passar a ouvir coisas que não existe, qualquer distração auditiva é bem vinda. Sem energia elétrica e com um iPod descarregado, eu estava prestes a enfrentar meus medos igual às mocinhas da Idade Média: gritando. Ou ficando louca. O que dava quase no mesmo.
Eu não sabia que horas eram, mas já tinha passado boa parte da madrugada quando a televisão ligou sozinha pela quinta vez. Aquilo já estava se tornando assustador. E insuportável de aguentar. Todos os interruptores das lâmpadas estavam acesos, para que, caso a energia voltasse, eu pudesse sair de de debaixo do edredom e respirar aliviada. Sim, eu enfrentava meus medos com a mesma convicção que enfrentava quando era criança.
Quando eu passei a ouvir sussurros indecifráveis num sotaque que se assemelhava a russo, eu soube que a sorte não estaria do meu lado aquela noite. A mulher que escolhera infernizar minhas noites há onze anos sabia dos meus medos. E sabia que eu não teria como me defender deles essa noite. O sussurros passaram para falas que evoluíram para gritos. Uma cacofonia de ruídos sem fim que me deixou mais com ódio que medo. Eu nunca tinha a visto. Só o frio que percorria a espinha quando a ouvia era o suficiente para viver com pesadelos diários.
Quando senti mãos à minha direita puxar desjeitosamente o edredom que me envolvia, habilmente retirei a cápsula de debaixo da minha língua e me esforcei para abri-la. Um pó insípido e gélido desceu pela garganta com auxílio da pouca saliva que me restava. Ainda tive tempo de ver o edredom sendo totalmente erguido, seguido de um protesto da cama que rangeu diante do ato impulsivo, o sol recém-nascido que iluminava sutilmente o pequeno quarto e minha mãe com o rosto em lágrimas me olhava incrédula. "Mães sabem dos medos mais íntimos de seus filhos", ela me disse um dia durante as férias de verão. "Fique comigo", ela me dizia aquela noite. Então veio a escuridão. O silêncio. Longe, baixo, quase inaudível, o sussurro oco recomeçou.
Meu deeeus, me lembrou de várias vezes em que eu via e ouvia coisas que ninguém mais notava!
ResponderExcluirTomara que não aconteça mais, hein? É uma sensação bem angustiante.
ExcluirObrigada pelo comentário!
CA-RA-LHO.
ResponderExcluirEu tô toda arrepiada. Que ótimo dia para ler esse conto, haja vista que estou sozinha nesse sábado (ainda bem que parou de chover). Eu tô aqui pensando se isso tudo é só imaginação, ou tem um pingo de veracidade (honestamente? tomara que não).
Wow. Wow. Wow.
Um beijo meu,
Mafê.
Será que tem veracidade? Fica o questionamento...
ExcluirBeijo meu pra você. Obrigada pelo comentário!
Que incrível ♥ Há sempre veracidade nas escritas, certo? Então me contenho a acreditar que sim. O conto tá muito bem escrito e pude sentir cada palavrinha descrita. Até hoje ainda gosto mais dos dias de chuva do que de sol, mas convenhamos que as trovoadas são um horror. Elas mesmas causas ecos na gente.
ResponderExcluirKelly, que bom te ver por aqui! ♥ Me inspiro muito pela maneira que você escreve. Eu concordo que os dias de chuva são melhores também. E os trovões são tão belos quanto assustadores. Controvérsias da natureza...
ExcluirObrigada pelo comentário!
Que blog lindo! Não conhecia <3 <3 Estou in love
ResponderExcluirE nossa, você escreve muitooooo bem :O e fiquei arrepiada com o texto! SÉRIO
www.apequenaka.com
Muito obrigado Ka! Espero que volte sempre, fico muito feliz de saber que através de minhas palavras consegui surtir o efeito desejado em você.
ExcluirObrigado pelo comentário!
Sel maravilhosa ♥ Que conto!
ResponderExcluirMaravilhosa é você Lari!
ExcluirObrigada pelo comentário!
Beijo ♥
Meu Deus! Sem palavras. Odeio me empolgar assim, mas, AAH, QUE CONTO!
ResponderExcluirPedro aparecendo por aqui! ♥
ExcluirFico muito feliz por minha escrita ter provocado isso.
Obrigada pelo comentário!
Isso me fez relembrar de certos medos meus. Não sei se odeio você ou lhe parabenizo kkkk certamente você merece parabéns. Justo agora que está chovendo, noite, sozinho e atrás de casa num quartinho frio. As vezes eu tenho vontade de sair correndo e ascender todas as luzes. Mas só as vezes. Enquanto o sussurro recomeçou, eu espero que aqui não apareça tão cedo :) Excelente história.
ResponderExcluirObrigada! Parece que você e a Mafê deram o azar de ler esse conto sob influência da chuva, hein? Eu também espero o mesmo. Pra mim e pra você.
ExcluirObrigada pelo comentário!
Uau Sel, me arrepiou do dedinho do pé ao último fio de cabelo! Não vou deixar de negar que minha ansiedade me coloca em situações parecidas e embora ainda more com meus pais, o medo continua presente. Texto incrível, parabéns!
ResponderExcluir"Quando a gente passar a ouvir coisas que não existe, qualquer distração auditiva é bem vinda."
Obrigada! Foi a exata sensação que eu queria proporcionar em quem lesse esse conto. Apesar de não querer que fique com medo, eu fico feliz por ter atingido meu objetivo.
ExcluirObrigada pelo comentário! :)