03/09/2017

Uma crise de identidade cultural


O contato excessivo da cinematografia americana com os adolescentes brasileiros quase sempre se resulta em expectativas exageradas e frustrações que costumam seguir a mesma dimensão. Mesmo que o primeiro semestre de faculdade seja todo mundo meio equivalente – descompensando o fato da idade, experiência profissional e educacional e outras áreas –, todos se olham de soslaio, ansiosos por alguém que decida puxar um assunto aleatório. E o tema é quase sempre o mesmo: nome, idade, trabalho, motivo da escolha do curso, sonhos... E aí entram os professores com suas apresentações e se sucede um novo diálogo de mesmo tema.

O ponto divergente principal que senti na primeira hora da primeira aula foi a diferença entre os alunos. Idade, assuntos, conquistas. Eu ali, recém maior de idade, com bagagem cultural quase nula – ou pouco relevante – em meio a pessoas que falavam de seus empregos enquanto eu ainda mal concluía o primeiro ano do meu primeiro trabalho, como atendente de lanchonete do McDonald’s. Enquanto muitos tinham suas metas bem estabelecidas – área de atuação de desejo, futuro tema de TCC, objetivos principais com o jornalismo –, eu ainda relatava que estava ali porque gostava de ler e escrever – talvez fosse porque é a única coisa que faço bem de verdade.

Numa das conversas de intervalo, uns colegas diziam o que estavam lendo. Saiu Nietzsche. Seguido de Tolstói. Dostoiévski. E alguns outros nomes russos – ou-sabe-se-lá-o-quê – que eu nem seria capaz de soletrar. Eu, já com dezenove anos completos ainda lia literatura juvenil, ainda por cima com gênero sobrenatural para ser o clichê dos clichês. Enquanto conversavam sobre bandas indie-alternativas-desconhecidas-aleatórias eu citava Engenheiros do Hawaii. Como é que alguém ainda se dispõe a dizer que não curte? E em meio a uns e outros cults, fui me sentindo meio deslocada com os gostos ainda juvenis. Uma crise existencial básica, umas contas rápidas, daquelas que estudantes de humanas ainda são capazes de fazer, e eu notei a variável. Os colegas de então tinham acima de 25, um até mais de 30 e eu ainda nem tinha completado as duas décadas. Me fez entender porque todos os nomes lidos em Teorias da Comunicação me encantavam ao mesmo passo que me assustavam.

Completado os vinte anos, a crise se esvaiu gradativamente. O livro que carrego na mochila ainda é juvenil: A Hospedeira, de Stephenie Meyer – que ironicamente também escreveu Crepúsculo, um dos livros mais criticados da atualidade e que eu ainda teimo em defender. O caderno novo a cada semestre, canetas coloridas no estojo rosa e os insistentes post-its que teimam em decorar as páginas são os rastros de uma tentativa falha de continuar com o mesmo pique do ensino médio. Mas a faculdade é meio complexa demais para se comparar à época da escola, mesmo que, inadvertidamente, a gente viva tentando comparar ENEM com ENADE. As matérias do caderno nunca são preenchidas por completo, há canetas que nem são destampadas e os post-its sempre sobram deixando uma observação de que – ironicamente – não há tantas observações relevantes a serem levadas em conta. E no final do semestre, haja xerox, haja paciência, haja xingamento e haja oração para aguentar a correria do prazo que está logo ali por culpa do velho “ainda tem muito tempo”.

Por alguns bons meses eu fiquei desesperada por não conseguir ler todo o pessoal que se dedicou tanto a construir boa parte do que é a base do que será meu futuro em breve, mas com algumas contas básicas, eu me acalmei de novo. Tenho ainda mais alguns anos à frente para sentir vergonha das tramas juvenis. Tudo no seu devido tempo. A única coisa que pretendo nunca mudar em comparação com a receosa Selma que entrou naquela faculdade há alguns semestres atrás é o motivo que a fez dar o primeiro passo: gostar de ler e escrever. Só o que mudou foi a ênfase. Hoje, quando me perguntarem o motivo da escolha do curso, a resposta vai ser breve e certeira: o amor às palavras. Sucinto, breve. Nietzsche e seus amigos de sobrenomes estranhos que me aguardem.

13 comentários:

  1. Que texto ma-ra-vi-lho-so, Selma!!! Sério, guria, que coisa mais linda foi essa que você escreveu.
    Tu disse que o principal motivo pra ter escolhido o curso era gostar de ler E ESCREVER, e olha, não sei quanto ao primeiro, mas o segundo tu faz muito bem. ^^

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    1. O-bri-ga-da Carol! ♥ Eu já me sinto um pouco envergonhada e meio boba de tanto comentário positivo assim, igual o seu! Sério, me deixou muito feliz aqui! :)
      Beijão!

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  2. Identifiquei-me absurdamente com você através desse texto, Sel. E vou te dizer: obrigada por isso. A ansiedade às vezes bate, mas palavras inspiradoras assim acalmam. Confortam. Aconchegam.

    Abraços e uma semana linda pra ti!

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    1. A gente não pode se culpar por não se sentir pronta ainda para qualquer coisa nova, né? Se Nietzsche ainda não consegue me convencer a lê-lo, ele que espere um pouco, porque as coisas vão ir acontencendo conforme seu tempo.
      E que bom saber que o que escrevi te trouxe essa sensação. Pra mim é sempre mais do que o suficiente gerar qualquer sentimento. Ainda mais aconchego

      Beijão Lari! Te desejo o mesmo! :)

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  3. amei intensamente esse texto. O reconhecimento, a garra, a energia que você deixou intrínseca em cada entrelinha. Me deu uma vontade louca de fazer faculdade de novo, sabe? De abraçar as palavras, como você abraça as tuas.

    Amei! ♥

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    1. Mafê lindona por aqui! ♥ Eu já reli diversas vezes essa crônica, no dia que escrevi, dias depois e agora a cada comentário de vocês. Acho que eu me libertei por inteiro com as palavras aqui registradas, talvez se eu fosse falar um pouco mais ainda teria muito desabafo pra rolar, mas saber que consegui deixar parte disso nas entrelinhas já me satisfaz o suficiente.
      MEU DEUS É A COISA MAIS LINDA QUE LI!
      Abraçar palavras: é disso que vivo e respiro, é pra isso que nasci.

      Beijão!

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  4. Nossa, voltou logo com um texto incrível!
    Acredito que qualquer resposta para a pergunta da escolha do curso Jornalismo sempre seja uma variação para o "gostar de ler e escrever".
    Não vejo a hora de passar por essa experiência, inicio de faculdade, descoberta das diferenças entre o ensino médio, aiai <3 beijo!

    Ray e os Dezoito

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    1. Ah que bom que gostou Ray! ♥
      Não tem muito o que variar, né? Aliás, eu já nem sei porquê ainda tem professor que ainda teima em insistir nessa pergunta em todo início de semestre. É quase uma tortura já.
      Você vai se pegar vivendo a melhor-pior fase. Saudades do ensino médio e a felicidade de estar na faculdade. Haja complexidade. A gente odeia admitir que ama a faculdade, mas é exatamente isso.
      Beijão!

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  5. VEI. VEI. PERA.
    Primeiro de tudo, já percebeu que a maioria dos meus comentários aqui sempre começam com uma sequência de palavras berradas em caps? Pois é, parabéns por ser uma escritora maravilhosaaaa!
    Eu li esse texto com vontade de gritar: SIM SIM SOU EU, mas eu não posso gritar, porque são 3h09 da manhã e mainha está quase acordando com o barulho frenético dos meus dedos no teclado.
    Eu não tenho nada a acrescentar sobre o que você escreveu, não por agora. Só que eu também estou me sentindo como você se sente/sentiu e que essa crise toda, principalmente de autoestima intelectual, é provavelmente o que todo mundo numa instituição de ensino superior sente. E eu me sinto melhor sabendo que é comum. Mas não é natural.
    Eu amei como você terminou esse texto :') Eu comecei o ano lendo Pam Gonçalves, e agora, apesar de eu sempre ter amado os clássicos, eu leio mais teorias cultas e sei lá o que do que eu gostaria. Saudades de um bom Y.A.... Tô compensando com uns filminhos bem clichês.
    Beijosss
    seessemundofossemeu.blogspot.com

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    1. TO PERANDO. AGORA. VAI. haha ♥
      Thai, eu tenho quase certeza que se a gente tivesse a mesma idade e morasse perto uma da outra a gente não ia ser tão parecida em tantas coisas, sabia?
      Menina, madrugando aqui no blog! Essas horas eu já devia estar no quinto sono, como dizia minha avó! haha
      Não é natural, mas é estranho estar acostumado com aquela quase equivalência do ensino médio, com todo mundo quase do mesmo nível pra depois, de repente, estar rodeado de gente com tanta conquista já. Só que como você mesma disse - na resposta do meu comentário lá no seu blog, que eu li ♥ - a gente é muito nova ainda. Se Deus quiser, ainda temos mais uns 80 anos pela frente e vivemos nessa correria frenética e eterna buscando um futuro que está logo ali, logo ali. Será que compensa? Ainda também não tenho a resposta pra isso, mas ainda me faz sentido e enquanto for assim, tudo bem.
      Filme adolescente: amorzinho que eu nunca vou conseguir negar ♥
      Beijão!

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  6. Selma, estou agora mesmo com Crepúsculo na minha mochila e estou na faculdade.
    Texto muito bom o seu, além de bem escrito.
    O inicio da faculdade é algo muito complicado pra gente. Já comecei duas e as ansiedades sempre existem. Seu texto é reconfortante.
    Beijos 😘
    http://cotidiano-alternativo.blogspot.com.br/

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  7. oi Selma! que texto incrível!
    sabe, eu entendo exatamente sua crise. também sou acadêmica de jornalismo, numa universidade privada. a maioria dos meus colegas de classe, se não todos, estudaram em colégios privados. sinto que mesmo que me esforçando o triplo nunca vou chegar ao nível intelectual deles, afinal, não aprendi a estudar no mesmo pique que eles e, consequentemente, minha base é quase nula comparada a deles.
    enfim, poderia ficar horas falando disso, mas entendo exatamente o que você diz. mesmo com toda essa insegurança, sinto lá no fundo que vou ser uma jornalista incrível.
    obrigada pelo abraço virtual que esse texto me proporcionou.
    um beijo,

    www.vestidinhojeans.com

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  8. Que lindo, Selma. Deixe-me adivinhar: estudante de Letras? Eu tranquei meu curso quando engravidei. Era pra ter terminado ano passado. Era uma das mais novas da sala, com 20 aninhos. Também me sentia um peixe fora d'água por levar pra ler no intervalo livros como Lembra de mim?, da Sophie Kinsella, mas com o tempo percebi que eu era uma das únicas, em uma sala com alunos de Letras, que lia.

    Vidas em Preto e Branco

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Um beijão, Selma Barbosa.