02/01/2018

Indigente


Antônio Silva, 43. Tinha quatro filhos, Claudia, de cinco, Marcos, de onze, Lívio, de quatorze, Catarina com dezenove. A mulher, Luzinete Cardoso, tinha 36. Viviam todos numa casa simples com cinco cômodos num bairro pobre da zona leste. Antônio, operário numa indústria de laticínios. Luzinete, diarista. Catarina, atendente de lanchonete. Claudia achava o máximo o pai saber fabricar queijo — era doida por eles. Os meninos sonhavam com um videogame e a mais velha, apesar de amar a família, queria casar com um cara da alta sociedade. Ser rica, ir morar no Morumbi. Luzinete tinha as mãos calejadas tal qual à de um pedreiro, também pudera, seu trabalho era árduo. Em véspera de feriado importante, Antônio ganhava algum brinde da empresa. Quando a Páscoa chegava, um ovo era dado pra cada membro da família — e Claudia dizia que queria ser operária igual ao pai.

Em plena sexta-feira santa, Antônio quis fazer sua família mais feliz. Além dos ovos, tirou quase todas as suas economias do banco e levou uma batedeira pra casa. Comprada nas Casas Bahia, em pleno feriado, quando os vendedores não dão a mínima se você quer levar alguma coisa ou não. Saiu contente. Mochila nas costas e sacolas nas mãos.

Foi recebido com abraços, pedidos de bênçãos, beijos e sorrisos. Só Claudia notara a caixa branca dentro da sacola.

— Quê que tem aí, pai? — Apontou com o dedinho miúdo enquanto pulava ansiosa deixando o cabelo cacheado cair-lhe sobre o rosto angelical.

— Uma batedeira, Clau.

— Ahn?

— Um fazedor de bolo.

— Uau! — A menina escancarava a boca como se fosse a melhor invenção da galáxia.

Não eram do tipo de família que tinham em casa diversos produtos eletrônicos, afinal não dispunham de dinheiro para tal. Antônio trabalhava na zona Norte. Pegava dois ônibus, um trem e dois metrôs pra chegar no trabalho. Saía antes do sol raiar e só voltava bem depois de a noite ter chegado.

Nas festas juninas, como parte da tradição da família, comprava milho na feira de rua perto de onde moravam e levava pra casa, pra assar numa churrasqueira improvisada com tijolos. A meninada corria polvorosa pra perto do pequeno fogo. Era a maior festa que tinham no ano e todo mundo ficava feliz ali.

Antônio era da roça, criado pra trabalhar e sustentar filho. Nunca dizia que os amava, apesar de o sentir. Nunca os abraçava, apesar de o querer. Nunca dava um beijo na testa das crianças como os pais de novela faziam, mesmo que o quisesse fazer. Achava que podia soar maricas para os filhos machos que tinham.

Num feriado sem importância (desses que todo mundo trabalha do mesmo jeito), comprou um saco enorme de jujubas pra estragar os dentes de suas crias. Depois de uma conversa longa com um amigo de fábrica, decidiu dar o devido valor a família. Dizer que amava todos, mesmo que — na cabeça dele — fosse só obrigação de mulher. Descia na avenida com jujubas numa sacola amarela, quando um vulto preto passou em alta velocidade levando-lhe a vida. Uma multidão corria apressada em sua direção enquanto jujubas de todas as cores ainda caíam do céu. Antônio não disse que amava, nem pôde saber qual era sabor que cada cor de jujuba tem. Antônio só existiu num mundo em que viver é coisa de segundo plano. Foi só pai de família.

Mas limpem a rua.
Removam o carro.
Cubram o corpo.
Liberem passagem.
Olha o trânsito que atrapalha nossa rotina.
Tinha que morrer justo hoje que tenho compromisso.
Manoela vai perdoar o meu atraso por causa desse acidente?
Alguém enterre como indigente que o homem não trazia documento.

9 comentários:

  1. Muito forte o texto, leva a uma grande reflexão sobre como valorizamos a vida humana e o que ela significa para nós dependendo de como é apresentada. Parabéns. Feliz 2018.
    notas-poeticas.blogspot.com

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  2. Que texto forte, Selma, me deixou com um nó na garganta. Sensacional mesmo, o tipo de conto que devia estar nos jornais pra todos termos essa reflexão tão importante.

    um beijo,
    acid-baby.blogspot.com

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  3. Nossa Selma, você quase me fez chorar a esta hora da noite, lembrei da música Construção do Chico Buarque e da música O Homem que Não Tinha Nada do Projota, você já ouviu elas.
    Gostei muito que você tenha voltado para o blog, recebeu meu email sobre minha cartinha?
    Se você vir meu último post vai entender mais sobre meu sumiço.
    Abraço!

    cotidiano-alternativo.blogspot.com.br

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  4. Texto lindo, lindo, dona escritora! Assim como a Fernanda, também me lembrei da música do Chico, da qual gosto bastante.

    Enfim, parabéns pela força das suas palavras!

    Abraços e um 2018 lindo para você 😘

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  5. Olá, muito bom seu blog ;)
    Já estou te seguindo!
    - https://tavaresplugado.blogspot.com.br/

    ;)

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  6. Que texto supimpa! Sem palavras. É aquele tipo de conto que você começa ler e se não terminar fica agoniado. Me fez lembrar de uma música chamada Vai Passar Rápido a qual estou me envolvendo,pois apenas relata a triste realidade.

    uma figueira

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  7. Eu não achei o final tão triste. Tipo, não "tão". Eu acho que os filhos e a esposa já sabiam o quanto o Antonio amava a família. Acho que a maior prova disso era que ele "foi só pai de família" e que "viver sempre esteve em segundo plano". Quero dizer, ele não era mais que um pai de família justamente porque isso o tomava todo o tempo, né? E se ele deixou que isso fosse tudo o que ele era, era porque sua família era mais importante do que "ser" outra coisa (~analises profundas de quinta a noite). É mesmo triste que ele não tenha quebrado esse "preconceito", dito que ama e entregado as jujubas, mas tenho certeza que antes de morrer Antonio deixou várias pistas de tudo o que nunca disse com palavras. O que fica é a saudade, etc. Mas imagino que o valor, ah, isso ele passou sim.
    Ps. acho que nunca li um texto feliz seu hahah
    e Ps. 2 me lembrou 'O homem que não tinha nada', do Projota.
    Beijos minina
    http://4mor-nuvem.blogspot.com.br

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    1. Olá Dona Selma esperando mais posts no blog,
      Grata,
      Nanda

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  8. Que incrível, adorei seu texto é inspirador e sensível. Parabéns pelo texto e pelo seu blog, amei! <3
    Beijos
    http://bel-somostaojovens.blogspot.com.br/

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Um beijão, Selma Barbosa.